sexta-feira, 11 de julho de 2008

Como se estruturam os modelos de relação com o saber de cada indivíduo dentro do ambiente familiar? - 2008

Como se estruturam os modelos de relação com o saber de cada indivíduo dentro do ambiente familiar?
Delly Danitza Lozano Carvalho

Resumo
O objetivo do presente trabalho é compreender melhor como a aprendizagem do ser humano pode ser vista e compreendida através do primeiro e primordial meio em que esta se desenvolve, a família. Como um sistema social constituído por subsistemas, que são seus membros e as relações derivadas, o estudo da família mostra que seus membros estão em contínua interação, exercendo e recebendo influências. Cada indivíduo ou membro desta família adota um modelo de funcionamento que se traduz nos papéis exercidos por cada membro da família.

Abstract
The objective of this work is to understand better how the learning of the human being can be seen and understood through the first and primary means by which it develops, the family. As a social system consisting of subsystems, which are its members and relations derived, the study shows that the family members are in continuous interaction, exercising and getting influences. Each individual or member of this family adopts a model of operation that is reflected in the roles held by each family member.


Quando falamos de aprendizagem, não podemos deixar de pensar no meio em que esta se desenvolve. Muitos diriam que o lugar por excelência onde se dá esse processo é a escola, em função de suas características educacionais, seu espaço físico e dos profissionais que nela atuam. Porém, não podemos esquecer que a escola foi criada e adaptada para atender as necessidades do homem – é organizada, podendo existir hoje aqui, e amanhã, não ser mais. Em síntese, a escola é uma criação social, uma invenção do homem que vive em sociedade.

Há, contudo, uma instância onde primeiro ocorre a descoberta de si e das relações com o próximo e com o conhecimento – a família. Entretanto, ao se analisar a aprendizagem e como essa se processa no ser humano, o papel da família tem sido relegado, quando muito, a um segundo plano. Essa abordagem excessivamente ‘escolar’ do processo mostra-se equivocada ao desconsiderar a grande influência e o papel do ambiente familiar e de seus agentes na construção dos modelos de aprendizagem.
A história do homem tem mostrado que é uma necessidade básica o viver em sociedade, e, mais especificamente dentro da sociedade, o viver em grupos. Não há registros de sociedades humanas nas quais o homem não buscou agrupar-se e viver com seus pares. As sociedades variam de cultura para cultura, de período para período, porém uma coisa permanece em todas as culturas: os pequenos agrupamentos com características de auto-sustentação afetiva, social, econômica e cultural, grupos estes que têm sido denominados como família.

A família é um sistema social constituído por subsistemas, que são seus membros e as relações derivadas, os quais estão em contínua interação exercendo e recebendo influências. Cada indivíduo ou membro desta família adota um modelo de funcionamento que se traduz nos papéis exercidos por cada membro da família. Acreditamos que assim como se desenvolve modelos na família, se desenvolve a modelo de aprendizagem, sob os membros da família. Como diz Andolfi (1984)[1], a família é um sistema vivo, em constante transformação, um organismo complexo que se altera com o passar do tempo para assegurar a continuidade e o crescimento psico-social de seus membros.

Sentido de Ser e de Pertencer

Podemos pensar na família como um sistema sócio-cultural, no qual, como em todo sistema, encontramos mudanças biopsico-sociais. (Minuchin, 1988). Para a sobrevivência e o sustento dessa família faz-se necessário que seus membros possam coexistir numa relação onde a identidade de cada indivíduo seja preservada. Para isso acontecer são importantes os elementos do ‘sentido de pertencer’ e o ‘sentido de ser separado’. (Minuchin, 1980). Nossa experiência de identidade tem esses dois elementos: um sentido de pertencer e um sentido de ser separado. A família é a matriz da identidade onde esses elementos se misturam. (Paccola, 1994)[2]. O processo de encontrar-se, de perceber, estabelecer e encontrar a individualidade, de sentir-se um sujeito único, portador de sua própria personalidade dentro do seu espaço familiar (ser separado), ocorre ao mesmo tempo em que se dá o processo de pertencimento, que é o sentimento de fazer parte de um grupo (família) sem perder a identidade. São processos simultâneos, pois é possível progredir na autonomia, confirmar a subjetividade, e pertencer a um grupo (família) sem ter receio de perder a própria identidade. A relação entre estes dois elementos (pertencer, ser separado) em um indivíduo é o que permite a socialização deste pequeno grupo, família, e que norteia o seu comportamento, assim como a sua relação perante situações de conflito.


Por Trás da Máscara Familiar

O sentido de pertencer é o que permite ao indivíduo estabelecer uma relação de confiança propiciando-lhe uma plataforma para o desenvolvimento saudável da afetividade. Isso contribui nos seus vínculos sociais, sócio-afetivos, promovendo e desenvolvendo a habilidade de enfrentar e resolver problemas. Nesta relação, o indivíduo sabe que pertence a um pequeno grupo social do qual ele faz parte efetivamente e no qual há padrões de comportamento a partir dos quais ele sabe como e o que esperar em diversas situações. Esse sentido de pertencer permite ao indivíduo recorrer ao acolhimento do vínculo familiar sempre que necessário, esperando pelos padrões pré-estabelecidos que este grupo lhe oferece em situações de perigo, desconforto, ansiedade ou alegria, sucesso, bem estar em atendimento às suas necessidades biopsico-sociais.

Dentro deste vínculo também se faz necessário o sentido da separação, sentido este que permite ao indivíduo ser um subsistema único e intransferível dentro do sistema familiar. É o sentido da separação que permite ao indivíduo delimitar um espaço no qual se possibilita o ser diferente dentro de um sistema igualitário, permitindo-lhe assim o exercício da autonomia.

É o conjunto destes dois sentidos que permite ao indivíduo agir e interagir dentro sistema familiar. É saudável que este indivíduo possa pertencer a um sistema sem necessariamente perder a sua individualidade. (Minuchim, 1980).

Para Winnicott

Por outro lado Winnicott (1975) afirma que para existir, crescer e chegar a ser eles mesmos, crianças e adolescentes carecem de um ego auxiliar, isto é, de uma figura parental suficientemente forte, que os sustenha emocionalmente e seja capaz de suportar e lidar com a transgressão, a rebeldia...

Para ele, o desenvolvimento individual das crianças se dá numa relação de dupla dependência de ordem física e emocional. Porém só pode acontecer através da sensibilidade e capacidade de adaptação de um adulto. Em outras palavras podemos dizer que para que uma criança se desenvolva de forma saudável ela depende de um outro, que possa atender as suas necessidades como alimento, afeto, atenção entre outras. Por outro lado, este adulto, para se sentir competente, para sentir que é capaz, depende do “retorno” de satisfação que a criança lhe oferece.

A visão que a criança tem do mundo exterior ao self baseia-se em grande medida no padrão da realidade pessoal interna; cumpre fazer notar que o comportamento real do ambiente em relação a uma criança é até certo ponto afetado pelas expectativas positivas e negativas da própria criança. (Winnicott, 2005).

Percebe-se que, ainda que na maior parte das vezes não tenham de forma objetiva a noção do que isso significa, as crianças possuem expectativas que influenciam e alteram suas reações e seu comportamento. Winnicott mostra que o padrão de realidade estabelecido a priori pela criança é que determinará parcialmente sua visão e suas interações com o meio.

O impulso criativo inato desaparece a menos que seja correspondido pela realidade externa. (realizado). Toda criança tem que recriar o mundo, mais isso só é possível se, pouco a pouco, o mundo for se apresentando nos momentos de atividade criativa da criança. (Winnicott, 2005, p. 16).

Entre outras, uma das necessidades da criança é de ser correspondida pelo meio em que ela está, para continuar a desenvolver a sua criatividade, sua forma de aprender de questionar e finalmente de se apropriar do seu saber. O início destes momentos não temos dúvidas é na família, pois é lá que a criança lança os seus primeiro ensaios sobre o aprender.

O que é criatividade? Isto vai depender da capacidade de adaptação e sensibilidade do adulto que a rodeia.


Destaco aquí, que mesmo abordando linhas de trabalho diferentes, os autores se inclinam e concordam numa coisa em comum: “é dentro do vínculo familiar que se constrói o que vou chamar de Matriz do aprender.”

Tem se falado da segurança como uma das necessidades básicas dos indivíduos, como uma das formas de proteger e unir o vinculo familiar. Para Winnicott a segurança é de fato necessária, mas não unicamente como um limite, que exerce sua função acolhedora, protetora de ações externas e perigosas, como muitas vezes os pais enxergam. Ele acredita que ao mesmo tempo seus indivíduos tendem a testar seus limites, de testar a liberdade que estes lhe proporcionam.Winnicott ainda falado sobre a segurança, menciona o poeta Lovelace, quando escreve que o espírito pode ser livre em qualquer lugar, mesmo numa prisão.Utilizarei desta esta analogia que Winnicott utilizou. As crianças nos dão sinal certo de sua boa saúde quando começam a ser capazes de desfrutar da liberdade que cada vez mais lhe conferimos. (Winnicott, 2005, p 44). É o ambiente circundante que torna possível o crescimento de cada criança; sem uma confiabilidade ambiental mínima, o crescimento pessoal da criança não pode se desenrolar, desenrola-se sem distorções. (Winnicott, 2005, p 45).
Relações Familiares

As relações familiares são ditadas ou estruturadas através da repetição dos padrões que se formam pela expectativa e interação constante dos sentidos de ser separado e pertencer dos diversos indivíduos, constituindo assim, diversos subsistemas. Dentro do sistema familiar podemos encontrar então uma variedade de subsistemas: sistema conjugal, sistema parental, sistema fraternal entre outros.Dessa maneira podemos estabelecer que cada indivíduo pertencente a estes subsistemas construa um sentido de ser separado e de pertencer aos mesmos. Faz-se necessário que se estabeleçam fronteiras no subsistema que defina quem pertence e como se define a atuação de cada indivíduo neste subsistema. (Minuchim, 1980). O estabelecimento dessas fronteiras é que vai determinar como vão acontecer as relações dentro deste sistema. Quando estas fronteiras ou limites não estão claramente definidos ou, quando são definidos com um rigor excessivo, elas interferem no desenvolvimento das relações dos subsistemas, interferindo assim nas relações no sistema familiar. Quanto mais claras e definidas forem as fronteiras dos sistemas e dos subsistemas familiares, mais claras serão aos seus membros as funções por eles a serem exercidas.
Partindo desse ponto de vista, poderíamos também ver na família e sobretudo nas relações entre seus membros a questão do poder, tal como Michel Foucault o analisa. Foucault, ao tratar do tema, rompe com as concepções clássicas deste termo e apresenta-o a nós como uma relação de forças. Ao ser ‘relação’, o poder está em todas as partes e uma pessoa está atravessada por relações de poder - não pode ser considerada independente delas. Para Foucault, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. Dentro da família, no processo de construção de relações, temos a presença da disciplina exercida pelos mais velhos (ou superiores) sobre os demais membros. Para ele, “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras".[3] È claro que nas inter-relações cotidianas, existe a questão permanente da disciplina, dos limites, como bem afirmou Minuchim. Mas são construções necessárias que permitirão à criança e aos demais membros da família lidarem de forma melhor e mais satisfatória com as demandas sociais em todos os seus aspectos.

Como disse o próprio Foulcault, “o mais interessante na vida e no trabalho é o que permite tornar-se algo de diferente do que se era ao início”. Como as construções e interações são múltiplas e constantes, o que teremos ao final não é um ‘produto’ certo e determinado. Contudo, é claro que os rumos estão atrelados ao tipo de vivência e de relações que se tem. “O jogo vale a pena na medida em que não se sabe como vai terminar.”[4]

As alterações no ambiente familiar
A família como um subsistema da sociedade sofre constantemente pressões internas e externas que provocam alterações nos seus membros, conseqüentemente nos seus subsistemas, sendo necessária uma constante adequação às novas necessidades e uma acomodação proveniente das mesmas.

As demandas que geram necessidades de adequação podem vir de fontes externas ocasionadas por outros sistemas sociais, como ambiente de trabalho, círculo religioso, ambiente escolar, entre outros. Por sua vez, as fontes internas que geram necessidades de adequação podem ser ocasionadas dentro dos subsistemas podendo ser eles luto, abandono, separação, doença, adoção, chegada de um novo membro, entre outras. (Munhoz, 1990).

Podemos assim verificar que se faz necessário uma constante flexibilidade os membros da família, assim como a sua acomodação às novas situações, podendo ser necessário nesta acomodação a flexibilidade ou ainda a alteração das fronteiras dos sistemas.

As novas exigências geram um desequilíbrio que requer uma reacomodação das funções e papéis exercidos por cada um dos seus membros, nos subsistemas e conseqüentemente do sistema como um todo. Esta adequação de cada um dos membros. É o que permite a permanência do sistema familiar, caso contrário o sistema pode entrar em colapso.

Já a família é um agrupamento natural ao homem, um meio que através da história passou por diversas adaptações, contudo, sempre presente na vida do homem e sempre reclamada e reivindicada por ele de diversas formas. Meio este que terá sua contribuição no desenvolvimento do indivíduo nas suas diversas áreas, desde o inicio da vida até o fim dela, mesmo que, no decorrer do caminho, esta se modifique. É a família que dará sentido a cada ação realizada, assim como dará o valor e significação do aprender naquele grupo familiar, na sociedade em que está inserida.

A família constitui um grupo, cujo formato se relaciona com a estrutura da personalidade do indivíduo. Sendo assim, nos perguntamos como a família contribui nos processos da estruturação do indivíduo e seus processos de aprendizagem.

E de fato na família que aprendemos a aprender. Ao pensar na criança, Winncott nos faz um pedido:
“lembrem-se da criança individual, do processo de desenvolvimento da criança, do desconforto da criança, da necessidade que a criança tem de auxilio pessoal e da capacidade que ela tem de usar a ajuda pessoal, simultaneamente, é claro, à lembrança contínua da importância da família e dos vários grupos escolares e de todos os outros que conduzem ao grupo que chamamos de sociedade.” (WINNICOTT, 2005. p.124).

No decorrer da vida nos deparamos com diversos grupos, (escola, trabalho, etc.) sendo “a família o primeiro grupo ao qual cada indivíduo se associa e no qual cada um desenvolve sua estrutura individual”, que é sustentada ou amparada pela mãe logo após o nascimento e nos primeiros momentos, depois pelo pai e ou, pelos outros membros, dando lugar a constituição familiar. (WINNICOTT, 2005, p. 125).

Princípio do Prazer

Conforme Ferenczi (1992), a criança recém-nascida se sente agredida pelo desconforto que o mundo real traz após o seu nascimento, provocando assim um desejo[5] de retomada do estado de satisfação que desfrutava no ventre materno; quer vivenciar novamente o prazer que este ambiente lhe proporcionava, num estado de onipotência[6] satisfatória, o que Freud chamou de “estágio-prazer”. (p. 39).

Para que isso aconteça, esta criança recorre “à violência do desejo (representação), negligenciando (recalcando) simplesmente a realidade insatisfatória”, tornando real o desejado, dando vazão à fantasia[7] de onipotência. (Idem).

Neste momento a mãe ou a pessoa que oferta os cuidados de acolhimento exerce uma função importante, pois através dos reflexos de inconformidade do bebê, (choro, irritação, agito, falha no sono) é que esta pessoa cria mecanismos que, de alguma forma, atendem ao desejo deste bebê, alimentando e dando manutenção à fantasia da onipotência.

Na medida em que o ser humano se desenvolve aumenta a complexidade deste indivíduo, e com ele, aumenta a complexidade e diversidade dos seus desejos e as dificuldades para que estes sejam compreendidos e atendidos, alimentando continuamente a fantasia da onipotência. Sendo assim, as manifestações do desejo (choro, irritação, agito, falha no sono), não dão conta de provocar a sua satisfação.

Gostaria de concentrar-me neste momento no aparecimento do que Ferenczi pontua como relações simbólicas. Podemos dizer que é a possibilidade de relacionamo-nos com os objetos ao nosso redor através do nosso corpo. Mecanismos que a criança desenvolve, utilizando o simbolismo para representar o mundo externo e os desejos que se relacionam com os aspectos corporais. O bebê então lança mão de um novo recurso: a imitação, desenvolvendo com ela uma linguagem gestual. Este mecanismo tem num primeiro momento, a construção simbólica gestual, que objetiva atender o desejo de modificação do mundo externo, assim como os desejos que tem uma relação direta com o corpo. Mais adiante, poderá então realizar uma construção simbólica verbal.

No período em que a criança utiliza a linguagem simbólica gestual, ela a constrói a partir da interação corporal, utilizando o seu corpo como ferramenta de comunicação e realização – ela passa a ter a percepção de que “existem potências superiores (mãe), cujas boas graças é necessário conquistar para que a satisfação se siga ao gesto mágico.” (FERENCZI, 1992 p.47).

Princípio da Realidade

Na construção de si, ainda utilizando-se do recurso da imitação, a criança começa a imitar a linguagem verbal, até perceber que a comunicação verbal é mais simples com um resultado maior na realização dos seus desejos, realizando assim progressivamente a substituição parcial da linguagem gestual, pela linguagem verbal, que, num primeiro momento limita-se a imitação meramente gestual, para transformar-se na complexa linguagem verbal. “Se a criança é tratada com amor, não será obrigada, mesmo nesse estágio de sua existência, a abandonar sua ilusão de onipotência” (Idem).

Esta linguagem verbal possibilita o pensamento, que, indiferente da sua objetivação, emerge para tornar real o desejado, dando voz e organizando o desejo, ofertando-lhe a oportunidade de obter um formato sensorial. A criança pode realizar uma auto-escuta possibilitando a troca dos reflexos motores pela significação do pensamento e finalmente, pelo simbolismo verbal.

Neste período, as crianças ainda acreditam ter poderes onipotentes, dando valores e poder aos seus pensamentos, assim como a transparência na ilusão de que tudo o que é pensado, poder ser lido e interpretado pelo outro.

“Só depois que a criança fica completamente desligada dos seus pais no plano psíquico é que, diz Freud, cessa o reinado do princípio do prazer. É também nesse momento, extremamente variável segundo os casos, que o sentimento de onipotência cede lugar ao pleno reconhecimento do peso das circunstâncias.” (Ferenczi, 1992, p.49).

É o momento em que o sentido de realidade torna-se quase concreto para a criança, outorgando-lhe o desprazer da realidade, minimizando a ilusão de onipotência:

“O desenvolvimento do sentido de realidade apresenta-se em geral como uma série de sucessivos impulsos de recalcamento, aos quais o ser humano é forçado pela necessidade, pela frustração que exige a adaptação, e não por “tendências para a evolução” espontâneas. O primeiro grande recalcamento torna-se necessário pelo processo do nascimento que, com toda a certeza, faz-se sem colaboração ativa, sem intenção” por parte da criança. O feto preferiria muito permanecer ainda na quietude do corpo materno, mas é implacavelmente posto no mundo, deve esquecer (recalcar) seus modos de satisfação preferidos e adaptar-se a outros. O mesmo jogo cruel repete-se a cada novo estágio do desenvolvimento”. (FERENCZI, 1992. p.52).

A criança não se encontra no estágio de diferenciação, antes, pelo contrário, o que ela busca é a similaridade. Obviamente, como diz Foucault, na fase adulta se dará o contrário: “se devemos nos posicionar em relação à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade, elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação”[8]

Passagem do Princípio do Prazer para o Princípio da Realidade: a construção da família

Para Winnicott, a mãe, de forma quase que natural adapta-se as necessidades do bebê, permitindo que este possa adequar-se à realidade de forma mais tranqüila (princípio da realidade). Dá-se a entrada do pai na construção do grupo familiar, seja na forma em que “a figura materna vai sendo duplicada”, o que parece acontecer de forma mais intensa nos últimos anos, ou utilizando o aspecto “duro, severo, implacável, intransigente, indestrutível, e que, em circunstâncias favoráveis, vai gradualmente se tornando aquele homem que se transforma num ser humano, alguém que pode ser temido, odiado, amado, respeitado”. (WINNICOTT, 2005 p.127)

Conforme Winnicott, a percepção que toda criança tem, é tal que, seria como se a “família” estivesse diretamente ligada “à extensão da personalidade da criança” junto com o processo do seu desenvolvimento e ou, a presença e o equilíbrio que a figura materna e a figura paterna lhe proporcionam.

A passagem para o princípio da realidade ocorre em paralelo à construção do significado da “família”, dos personagens que integram a mesma, tendo uma relação direta da forma como esta criança realiza a passagem do estado-prazer, para o estado-realidade.

Não se trata simplesmente de haver um pai e uma mãe, e de que talvez outras crianças apareçam com o tempo, passando então a existir um lar com os pais e filhos. Para as cinco crianças de uma família, há cinco famílias, que não são necessariamente semelhantes e, sem dúvida, não são iguais. (WINNICOTT, 2005 p.128). Podemos observar que a realidade de cada indivíduo não é necessariamente a mesma, sendo assim, a realidade e o sentido da família se modificam, não unicamente de família para família, ou de sociedade para sociedade, mas também entre os diversos integrantes de uma mesma família, pois cada um tem uma construção diferente de realidade.

É no início da vida na família, que a criança realiza seus desejos e, na mesma família, na figura da mãe ou representação materna, ou duplicação da mesma, que ela se alimenta também neste início da vida da ilusão da onipotência.

O simbolismo gestual, que se torna em simbolismo verbal, torna possível o pensamento consciente na medida em que, associando-se aos processos de pensamento, em si mesmo inconsciente, confere-lhes qualidades perceptíveis. (WINNICOTT, 2005. p. ). É o pensamento consciente que torna possível conferir o nosso sentido de realidade, que, de forma cruel, porém paulatina, retira o véu do ilusório desejo, para a constatação da realidade, realidade individual, única e intransferível que nos dota de um saber que se torna pensável e representável, primeiro de forma gestual para depois dar lugar a elaboração do pensamento verbal. A criança passa a se reconhecer e reconhecer o seu meio, o mundo real no qual ela está inserida.
“O pensamento consciente por meio de signos verbais, é portanto a mais alta realização do aparelho psíquico, a única que permite a adaptação à realidade, retardando a carga motora reflexa e a libertação do desprazer.” (FERENCZ, 2005, p. 48).


A possibilidade do saber se dá, através do pensamento e da constatação do aprender da realidade externa. É na família que realizamos as primeiras representações da realidade externa, tornando pensável e com isso reconhecíveis os seus integrantes. É na família que reconhecemos o acolhimento (sentido de prazer), o mesmo que nos protege numa fantasia onipotente na qual estaremos protegidos e refugiados da realidade externa. A família é de extrema importância, os pais que conseguem manter o lar unido estão, na verdade, prestando a seus filhos um serviço de inestimável importância. (WINNICOTT, 2005. p. 43). Seja na relação dos cuidados maternos, ou no olhar implacável do pai, a criança tem a possibilidade de reconhecer na família a possibilidade de amar e odiar, de ser solidário ou egoísta, de entrar na realidade externa e poder voltar da mesma a um porto seguro.

É necessário que se edifique no interior de cada criança, a crença em algo que não seja apenas bom, mas que seja também confiável e durável, ou capaz de recuperar-se depois de se ter machucado ou mesmo perecido. (WINNICOTT, 2005. p. 44). Mesmo não sendo perfeito, o ambiente proporcionado pela família é que torna possível a desenvolvimento pessoal, que tem seu início no processo de imitação, não só das linguagens nela elaboradas, mas também dos papéis nela exercidos. É o ambiente circundante que torna possível o crescimento pessoal da criança; sem uma confiabilidade ambiental mínima, o crescimento pessoal da criança não pode se desenrolar, ou desenrola-se com distorções. (Idem, p. 45).

É função desta família proporcionar segurança:
1. Livrando a criança do inesperado;
2. Protegendo as crianças dos seus próprios impulsos e dos efeitos que estes possam produzir.

Não Aprendizagem: Sintoma ou Realidade Familiar

De acordo com Mannoni (1999), a psicanalista e educadora Ana Freud, ao desenvolver seu trabalho com crianças com impossibilidade de serem escolarizadas, caracterizou a criança com problemas de forma individualista, chegando a propor que as crianças em análise fossem retiradas do convívio com as suas famílias e recolhidas em escolas especiais, por considerar que a influência que os pais exerciam sobre as mesmas era prejudicial. Mais adiante, ela mesma concluiu o erro que cometera ao “não permitir aos pais que assumissem normalmente o seu papel de educadores”. Foi um período em que a psicanálise acrescentou um valor educacional, diante de uma sociedade que revela, entre outros, inúmeros sintomas escolares. Esta experiência pôde revelar que, mesmo em algumas famílias consideradas como não favoráveis para uma determinada criança, a leitura que esta criança desenvolveu da realidade externa, muitas vezes atendeu a uma construção familiar. Resultando numa construção muitas vezes patológica, mais que precisa ser travalhada e elaborada a partir do lugar onde se originou o sintoma[9].

Balint (1960) prega que o sintoma não deve ser tomado ao pé da letra, tentando compreendê-lo dentro do histórico em que se apresenta o sintoma – é necessário dar o devido espaço “em relação à doença ou o doente e a si próprio”:

“Penso nas dificuldades escolares, nos problemas provocados pela dislexia e pela debilidade. É certo que é grande a tentação para orientar a criança, para mudá-la de meio, introduzir reeducações diversas, antes mesmo que tenha sido compreendida a significação do sintoma na história do sujeito, assim como na sua relação com a família.” (MANNONI, 1999. p.153).

Acredito que é aqui que entra psicopedagogia, na observação do sintoma escolar, dando voz e consequentemente, significado aos conteúdos que a criança traz. Os pais muitas vezes trazem uma queixa, no processo de escolarização de seus filhos. Lembremos que a escolaridade é uma “exigência moderna”, da sociedade atual. Nossa sociedade adequou-se de forma criativa a essas exigências, até porque o aprender está relacionado ao cerne da construção do indivíduo e sua relação com a realidade externa.
Mannoni (1999) completa:
“Tomando o sintoma ao pé da letra acaba-se por perder de vista o discurso da criança. É, neste discurso que intervêm todos os elementos de desordem escolar, intelectual, etc. que motivaram a consulta. Eles constituem, à semelhança de um sonho, um enigma que é preciso decifrar. Às vezes há um trabalho lento a ser feito antes que se possa ler esse processo que os pais apresentam, e do qual a criança faz eco na sua maneira de se apresentar. (p.161).

Temos então dois caminhos a seguir:
1. Atender de forma imediata a demanda escolar, propondo recursos de ordem pedagógica, que possam unicamente se propor à continuidade da escolaridade, sem olharmos para a origem do sintoma e seus futuros retornos sob outra roupagem.
2. Lançar mão de diversos recursos que nos permitam fazer a escuta do discurso da criança, não esquecendo que a sua construção individual é uma extensão ou representação da construção familiar

Na segunda opção, realizamos a nossa escuta dos conteúdos que a criança traz através de uma linguagem simbólica. “Nesta linguagem imaginária empregada na psicoterapia, a criança pode falar porque as coisas não lhe dizem respeito. Na vida real, falar é um compromisso e ela não pode consentir nele.” (MANNONI, 1999. p.185).

Na construção individual, cada sujeito tem a contribuição do meio em que este se desenvolve e os indivíduos que dele fazem parte, para possibilitar a passagem entre o estado-prazer e o estado-realidade. Todos, de acordo com Winnicott, nesta construção terão idas e vindas entre esses dois estados. Temos exemplo típico quando, depois de um dia de diversas tarefas, nos deparamos com a volta ao lar: o transito, a demora, a fome, etc. – há a interpretação desta realidade como dura, árdua, hostil, agressora. Nossa ilusão onipotente volta, no desejo de nos livrar e ausentarmos-nos da realidade e adentrar ao lar. Este se revela como um ambiente extremamente acolhedor, com os pertences que tem o seu significado simbólico de prazer, e logo após, alguém oferta uma refeição que, com o seu agradável cheiro ativa as papilas gustativas – vamos suavemente adentrando no estado-prazer novamente, onde num passo de mágica, nossos desejos são realizados e novamente parece que voltar o sentido da onipotência, mesmo que por poucos minutos.

Podemos caracterizar então, como dificuldade, quando o indivíduo não consegue fazer estas idas e vindas de forma tranqüila de modo a não conseguir lidar com as mesmas. No atendimento psicopedagógico, a criança muitas vezes não dá conta de lidar na realidade com a sua angústia.

Com isso ela utiliza a linguagem simbólica. “Em psicoterapia, a criança é suficientemente arguta para sentir que aquilo de que ela fala lhe diz respeito, apesar de tudo, mas pode fazer de conta que não”, (MANNONI, 1999. p.185). E, “na vida real, a única saída possível para manter a autonomia de que ela tem necessidade é recusar a linguagem e os seus sinais” (MANNONI, 1999. p.185).

A família, como agrupamento natural, embora ao longo da história da humanidade tenha passado por diversas adaptações, é o núcleo e centro, por excelência, do aprender, do saber e da construção do conhecimento. A célula mater da sociedade corre o risco de, não entrar na escuta, e ser relegada a um plano secundário no processo de atendimento e tratamento dos problemas.

A família, sendo o ambiente no qual se desenvolve o ser humano, tem a importância na escuta da criança, pois a família reconhecida pela criança, tanto nos seus personagens, como na sua caracterização, é o primeiro indício da relação que esta criança tem com a realidade externa. Portanto, a possibilidade de lidar com esta realidade, tem este lugar de acolhimento sempre que precisar.
A linguagem simbólica (desenho, história) possibilita a criança falar dela, da sua construção e das suas impossibilidade. Cabe ao psicopedagogo interpretar esta fala simbólica e significar os dados representados.

Compreender a forma como aprendemos o mundo, implica necessariamente em compreender como nos constituímos como indivíduos dentro do grupo familiar

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FERENCZI, Sándor (1992) O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios. (pp.39-53) Em Sándor Ferenczi, Obras completas. Psicanálise II. São Paulo: Editora Martins Fontes. (Trabalho publicado originalmente em 1913).
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2005.
_________________. Verité, pouvoir et soi. (Entrevista com R. Martain, Université du Vermont, 25 de outubro de 1982). Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento a partir de Dits et écrits. Paris:Gallimard, 1994.
_________________. An Interview: Sex, Power and the Politics of Identity. Entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984.
LAPHANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. 4ª Edição. São Paulo: Martins fontes, 2001.
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PACCOLA, M. KROM. Leitura e diferenciação do mito. São Paulo: Editorial Summus, 1994.
WINNICOTT, Donald W. A família e o desenvolvimento individual. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
WINNICOTT, Donald W. Tudo começa em casa.. Tradução Paulo Sandler. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[1] ANDOLFI, Maurizio, ANGELO, Cláudio, MENGHI, Paolo Menghi e MARIA, Anna. Um Novo Enfoque em Terapia da Família (Behind The Family Mask: Therapeutic Change in Rigid Family Systems). Tradução: Maria Cristina R. Goulart. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul, 1984.
[2] PACCOLA, M. KROM. Leitura e diferenciação do mito. São Paulo: Editorial Summus, 1994.
[3] FOUCAULT, A Ordem do Discurso, Rio de Janeiro, Loyola, 2005, p.36.
[4] FOUCAULT, Michel. Verité, pouvoir et soi. (entretien avec R. Martain, Université du Vermont, 25 de octobre 1982). Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.a partir de Dits et écrits. Paris:Gallimard, 1994, vol. IV, pp. 777-783.
[5] Desejo: Na concepção dinâmica freudiana, um dos pólos do conflito defensivo. O desejo inconsciente tende a realizar-se restabelecendo, segundo as leis do processo primário, os sinais ligados as primeiras vivências de satisfação. A psicanálise mostrou, no modelo do sonho, como o desejo se encontra nos sintomas sob a forma de compromisso. (LAPHANCHE, 2001, p.113).
[6] Onipotência: é a impressão de ter tudo o que se quer e de não ter mais nada a desejar, é o que o feto poderia pretender no que lhe diz respeito, já que possui constantemente tudo o que lhe é necessário à satisfação de suas pulsões, portanto nada tem a desejar, é desprovido de necessidades. (FERENCZI, 1992, p. 42).
[7] Fantasia: Roteiro imaginário em que o sujeito está presente e que representa, de modo mais ou menos deformado pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente. (LAPHANCHE, 2001, p.169).
[8] FOUCAULT,Michel. An Interview: Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58.
[9] Sintoma: Fenômeno de caráter subjetivo provocado no organismo por uma doença e que, descritos, auxiliam em maior ou menos grau a estabelecer um diagnóstico. (AURELIO, 1999, p.1863).